Crítica- Amsterdam.

Sinfonia do branquelo biruta

Longe das telonas desde 2015, David O. Russell retorna com um filme que vai do modorrento ao aprazível, da indecisão à convicção dentro de um átimo.

David O. Russell, a despeito da errática e beligerante ética trabalhista que já o colocou em atrito com gente do calibre de George Clooney, Lily Tomlin e Amy Adams, parece ser um sujeito com um senso de humor saudável, com olho calibrado para a sátira, o sarcasmo e o deboche dentro de uma perspectiva social que desencadeia episódios cada vez mais burlescos. Não surpreende, portanto, quando se constata que seus melhores trabalhos, Três Reis (1999) e Trapaça (2013), sejam justamente comédias mescladas ao drama em que o humor não vem só da caracterização dos personagens, como também da trama rocambolesca e de uma narrativa autoconsciente dos próprios desvarios, evidenciando e ampliando a farsa.

Amsterdam (Idem, 2022), o qual marca o retorno do cineasta às telonas após quase uma década desde o lançamento do mediano Joy- O Nome do Sucesso (2015), também é dotado de algumas dessas características, mas comete um equívoco fundamental: confunde o bem-vindo exagero cômico com descompromisso extremo, enxerga a comédia de erros como um arremedo de situações e personagens despropositados e, acima de tudo, não oferece ao espectador uma justificativa plausível e envolvente para investir 134 minutos de sua vida em uma narrativa acidentalmente caótica, sem foco e cujas boas intenções resvalam ora na escolha inadequada do gênero dramático (o policial noir), ora na hipocrisia formal e discursiva do roteiro, também assinado por O. Russell.

Então, é melhor começar essa argumentação a partir do guião do filme, já que se trata da principal deficiência deste longa-metragem, além de evitar, nesta crítica, o mesmo problema que aflige o objeto observado: a imperfeição de seu modelo narrativo. Boa parte do primeiro ato apresenta o espectador a um mundo idiossincrático, porém, dotado de alguma urgência conspiratória periclitante, engatilhando um incidente incitante trágico e potencialmente sério. Todavia, não demora muito até que o filme mude de perspectiva ao abraçar uma comédia leve, com fortes toques de romance que ajudam a temperar o segundo ato junto a outros elementos lúdicos, como espionagem, identidades falsas, corrupção policial e organizações secretas. Já no clímax da projeção, somos apresentados ao grosso dos eventos factuais nos quais a produção se baseia e pela qual se vende ao público, acertando a retomar a ameaça do início, porém, errando ao tentar mesclá-la à aleatoriedade do miolo da história.

Essa indecisão entre noir, romance, comédia dramática e farsa desnuda a estrutura frágil de Amsterdam, que não enxerga possibilidade de subtexto nem nos personagens, na construção do enredo, deixando a plateia perdida entre diálogos e dinâmicas as quais não levam a lugar algum, sem mesmo um centro temático que as unifique dentro da mesma cena. Exemplos candentes são os momentos em que uma importante conversa é interrompida para se questionar o valor estético de um objeto decorativo (!) e aquele que traz Taylor Swift quase quebrando a quarta parede durante um canto inadequado durante o velório de Bill Meekins (Ed Begley Jr.), cuja morte é o motor da trama, mas sem que os personagens chamem atenção para o absurdo da situação.

Ademais, a falta de organização também se traduz numa narrativa reiterativa, durante a qual os personagens precisam reafirmar sua condição de perseguidos a cada cena ou simplesmente cobrem a audiência de exposição verbal (de conceitos, da trajetória pregressa das “peças de tabuleiro”, do contexto histórico, de apostos, etc.). Para completar, nem os diálogos se destacam, uma vez que surgem despidos de personalidade, meramente instrumentais (a resolução do conflito é particularmente irritante ao desconsiderar a inteligência do público) e, o que é pior, sem estofo, com toda a carga de subtexto extraída diretamente para a camada superior de interpretação, logo, artificializando o discurso em razão do teor declamatório e deixando os atores desconfortáveis.

Ora, Russell comete até mesmo um erro primário de não estabelecer um foco narrativo sem divagar para outros sem motivação justificável. Embora Burt Berendsen (Christian Bale, ótimo) seja o responsável pela maior partes das interferências em off, por vezes, Valerie Voze (Margot Robbie, inacreditavelmente apagada) tem seus pensamentos externados à plateia, sendo que o mesmo não obstante deixa de acontecer a Harold Woodsman (John David Washington), o qual completa o trio de protagonistas. Pode-se explicar o preterimento de Washington ao fato de Bale e Robbie serem estrelas consagradas e chamativas, a despeito de ocuparem importância similar dentro desta arquitetura ficcional. Escapando do cinismo, o resultado prático vai de encontro aos ideais inclusivos e tolerantes que o texto faz questão de martelar nos minutos finais do filme: de nada adianta colocar Chris Rock reclamando sobre racismo e violência de classe se nem mesmo uma das figuras centrais desta empreitada tem reservado o direito de exercer sua própria voz, estando sujeito à boa-vontade e conscientização progressista dos amigos brancos, os únicos capazes de resolver as vicissitudes no caminho de Harold, como a narração de Burt nos segundos finais faz questão de atestar.

Já em termos estéticos, entretanto, a coisa é um pouco melhor. O realizador e o diretor de fotografia Emmanuel Lubezki demonstram entender a dinâmica visual dos filmes noir das décadas de 1930 e 1940, apostando em marcações cênicas que privilegiem a figura humana perpassando bueiros esfumaçados, ostentando o clarão através de janelas e se postando abaixo de postes cujas luzes inquisitoriais lhes garantem uma aura de mistério e perigo, no que formam um casamento perfeito com o design de produção de Judy Becker e os figurinos de Albert Wolsky e J.R Hawbaker, os quais brincam tanto com a atmosfera retrô do enredo, quanto ajudam a intuir traços de personalidade ou de caráter (caso de Tom e Libby Voze, interpretados por Rami Malek e Anya-Taylor Joy, respectivamente). Ainda assim, a irregularidade e o despropósito também se fazem presentes no tratamento visual, pois, por exemplo, alguns ângulos mais baixos se revelam arbitrariedades afetadas que pouco ajudam a ampliar a potência da massa de estória. Ao menos, deve-se destacar o enquadramento de perfil esquerdo que brinca ao antecipar o acidente sofrido por Burt e que lhe subtrai o olho direito – aliás, depois de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura e, agora, Amsterdam, 2022 é o ano do olho como leitmotiv.

O que nos leva à pedestre montagem de Jay Cassidy, professional competente, renomado e colaborador do diretor em seus três últimos trabalhos, mas que, aqui, só causa desapontamentos. Os planos longos, de timing cuidadosamente orquestrado por Russell e Lubezki, se tornam jump-cuts (cortes bruscos) incompreensíveis nas mãos de Cassidy, que interrompe o fluxo dos movimentos de câmera e contrasta um quadro célere a outro estático, criando um estranhamento inequívoco, além de insistir, durante o clímax, em alternar três tonalidades diferentes para o momento dramático mais importante da iniciativa, saltando do suspense à comédia e desta ao drama, retornado à farsa. Por fim, a montagem perde a oportunidade de explorar a comicidade ou o deslumbramento de sequências demasiado longas, as quais terminam por enviar o ritmo para os 33 círculos do Inferno e que não se provam indispensáveis ao conjunto final (não se deve esquecer a improvisação musical feita por Burt, Harold e Valorie diante do general Gil Dillenbeck, benfeito por Robert DeNiro).

Por Deus, Amsterdam chega até a dificuldade em defender seu próprio título! Em tese, a menção à capital holandesa se refere ao lugar de felicidade em que o trio central viveu seus melhores instantes, assim, a cidade se transforma numa quimera, na ilha utópica moriana, em que os valores da amizade, igualdade, justiça, tolerância, antirracismo e amor imperam sobre os sentimentos e práticas sociais mais nefastas que o ser humano poderia conceber e executar. O problema é que a dramatização retardatária se esquece de conceber um conflito alinhado à unidade temática e só apresenta uma contraposição efetiva no quarto final da metragem, ou seja, se não há contra quem torcer, para que estar a favor de um lado? Mais: se não há elementos claros e relevantes que movam uma história, por que alguém deveria se importar? Quando, enfim, introduz seus objetivos, metade dos espectadores já abandonou a sala de cinema (sem hipérboles).

David O. Russell pode até ter um bom humor, mas definitivamente não está com senso de direção. Uma ironia mais saborosa, em se tratando de um diretor, do que qualquer piada deste filme.

Nota: 5,0

Avaliação: 2.5 de 5.

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